quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Brilho dos luares

O dia saía do céu tardio, ainda fraco. Entre ventos frios eles ficavam, sentados juntos, partilhando um qualquer calor mais especial. Ficavam-se por ali a falar sossegados, debitando-se sobre eles a vontade de um universo mais puro. Com a atenção suficiente era possível sentir a quietude da cidade, sem barulhos, sem realidade. Eram eles ali. Mais nada. O silêncio da aragem.
Ela chegou-se mais perto então. Os seus olhos atlânticos escorreram sobre ele um desenho falsiforme, um traço sem rota definida como alguém que se perde no caminho. Querer vê-lo inteiro num só olhar sem centro focado levou-a a completar-lhe um beijo na bochecha barbuda. Depois outro, e outro. Cada vez mais próximo dos lábios…Ele ficava-se a recebê-los entre a aragem calada. Entretia-se com um ponto qualquer no infinito. Ocupava a mente com o nada. Parado, forçava os nervos faciais, sentindo de cada beijo o mais possível. Tê-los como garantia vital, como bem essencial. Porque fosse o planeta verdade, fosse tudo real e certo…ser quem eram, ali, construía a ponte para um mundo mais forte. Um mundo onde o núcleo gravitava em cada beijo, em cada respiração.
Ela chegou-se mais perto dele, agora com os olhos serrados. Saboreou-lhe o canto da boca. Aquela quase nula presença labial forçou-o a torcer-se, fitá-lo e olharem-se por um segundo. Um segundo apenas. E já não fazia frio. Não fazia coisa nenhuma. Só aquilo. Um segundo para se arrancarem um do outro.
Sem saberem já os seus lábios se agarravam. Colhiam do outro um beijo cheio, possuído por uma espécie de poder superior. Ele recolheu-a a si, abraçou-a suavemente e uniu-a consigo. Parecia ter de o fazer para sentir mais dela. Testemunhar a sua existência quase surreal, duvidosa até. A aragem era calada. O silêncio de tudo…
Permaneceram abraçados. Continuavam o beijo, encruzilhados um pelo outro. Faziam-se mutuamente; ele recolhendo-a nos lábios, ela deixando-se recolher. Ás vezes paravam, olhavam-se um pouco, e beijavam-se outra vez no meio de um sorriso sublime. Cada vez mais chegados, mais agarrados, como se faltasse sempre um pedaço do outro por sentir.
Alguns, passando por ali, comentavam baixinho em palavras difíceis de apanhar. Franziam a testa num pormenor desconfortável de visão enquanto eles se aqueciam do vento. Chovera naquele dia cinzento…
Tinham os olhos fechados mansamente quando ela o beijou mais dentro. Ele sorrira numa surdina tímida, e correspondera. Ficou-lhe com os lábios e a boca e cada respiração parecia trazer um perfume desvanecido no ar. Uma língua massajava a outra envolvidas num fluido dócil e fortificante. Um beijo às vezes interrompido por um misterioso inclinar de cabeças. Os narizes cruzavam-se, deformavam-se e voltavam a ser quem eram no meio de um vento mais forte.
Ele parou. Atirou-se numa equação incompreendida, perguntava sobre algo sem saber do momento. A solução fora minutos mais tarde encontrada na língua dela, irrompendo das letras inconscientemente, silvando em respostas ineficazes. Fê-lo chamando a si a beleza do movimento, continuando o beijo numa ternura só traduzida num idioma conhecido por ambos. Ele apertou-a contra si, calmamente, apenas o suficiente para os narizes se voltarem a cruzar.
Passara meia hora. As bocas humedeciam-se, perdidas entre gestos suspensos. Algo crescia ali. Sem dor, sem consciência, como duas almas fundidas num prazer quase perfeito. Ao longe alguém olhava por sobre o ombro; mais perto, um casal de namorados fitava-os, indeléveis, quase com inveja. Pararam. Iam-se afundando no olhar do outro, uma prisão para um coração com mais um detalhe, mais uma feição. Ela aproximara-se. Testa, bochecha, depois a outra. O nariz, o queixo. Beijos pequenos crepitando nele numa satisfação instantânea. Beijos como pequenas cirurgias plásticas…
Estavam sentados ainda. Ela sobre ele. Depois sorriam. Apreciavam os dentes do outro, pormenores de brancura exacta. Arrebataram mais um beijo, levantaram-se e desvaneceram no horizonte encardido da cidade. Dois vultos intensos. Caminhavam abraçados, desnudados um com o outro, mão com mão, um só no meio do vento.
Arcanjos caídos, esquecidos depois…
A aragem calada desaparecera com eles…porque minutos mais tarde…começara a chover.



9.11.2010