quarta-feira, 29 de setembro de 2010

querida nuvem

Talvez tenham os teus olhos visto o ar cá em baixo a escurecer os dias. Como a noite que prolonga os caminhos e a estrada não dá conta.
As árvores desnudam-se e calcam as folhas com ramos cheios de nada.
Trago na cabeça qualquer coisa esvaziada, como se trouxesse a dor de não-ser. Pois talvez fossem os olhos mais recheados do mesmo que molha o coração, ou a língua não secasse como a pele que pelo frio se envergonha de mim. E continua e arranca-se a pele do que tenho dentro de mim e que sou eu - um ferro quebradiço, enferrujado como o vento que assobia.
Tu aí em cima, que cobres com véus o mundo, ilumina-me de contraste, de coisas diferentes…ou simplesmente contorna-me com os marcadores que fecham o infinito. Porque me falta saliva para pensar e vontade de falar. Porque o mel me escurece as veias como as noites ventosas. Como noites me tenho sentido, assim, escuro e vazio, gélido como os cometas que talvez existam.
Os meus dedos enfraquecem quando te escrevo, ó nuvem alta! Peço-te que não me lances demoras nem tempos imprevistos porque parei de dar horas. Não me lances chuvas de memórias cinzentas talvez pintadas pela saudade que já põe distancia no meio de nós.
Nuvem que te penduras no céu, deixa-te molhar pela estrela que guarda o meu caminho, deixa-te atravessar pelo sol que me faz falta…não quero ficar cá em baixo, no mesmo sítio, até que me faltem as páginas da alma…





04.03.2010

terça-feira, 28 de setembro de 2010

soldado

Uma lança parte-te ao meio, assim, suavemente. Ficaste ali a jorrar a tua vida, a pintar o chão de sangue enquanto o Sol subia vermelho. Nasciam em ti manchas pálidas do que te criou, da matéria que te atravessava. E as minhas palavras desvaneciam no teu tímpano, assim, entardecidas. A luz que trazia o crepúsculo murmurava numa língua proibida o teu destino, uma lembrança que o presente herdara dos Reis escondidos de outrora. Equação das mais imperfeitas, a equação de uma morte sonolenta, um exangue bélico onde a tua ofegância me misturava num imóvel movimento. Via-te ali, atingida, aconchegada à tua armadura ensopada, numa ternura digna da Estrela do Norte onde só se refugiam os planetas que não existem. Porque tu, amortecida e enevoada soltavas uma neblina invisível, um dócil fumo de vida. Ainda tinhas a espada agrilhoada nos dedos e o teu pulso permanecia firme. Tinhas as pernas contraídas tornando-te uma guerreira mesmo na morte…e mesmo contra a morte. Lutaste e eu assisti, e aplaudia de vez em quando, e assobiava também. Mas fraquejaste. Cedeste, e agora os teus dedos dissolviam a tua força para mim. Seguraste a minha mão num gesto fraco, olhaste-me e balbuciaste um idioma partido, desterrado de sentido ou anónimo. Fazias um esforço para as letras se montarem mas as tuas pernas estavam agora moles, e as manchas brancas tornavam-se numa treva única. Vi as lágrimas a embaciarem-te a vida, a clamarem por ajuda. Mas eu via-te parado, ali, assim, adormecido. Mexeste-te com mais força, ainda que não fosse suficiente para os músculos contraírem. Na verdade, mexeste apenas os olhos... Continuou o momento sem ter conclusão definida. Ficaste assim, a olhar-me enevoada, parada e imutável. Pensei em abraçar-te e fi-lo. Apesar da tua morte expiraste uma última vez, fora do alcance dos deuses ou da obscuridade, e eu senti-te perto. Nunca te abraçara. Nunca te beijara. Nunca sequer te vira àquela distância. Mas ali, no teu leito, vi-te como uma mãe vê um filho, como a lua vê o céu, como um trovão vê o relâmpago. Depois de te largar, pousei-te suavemente na relva ensanguentada, desembainhei a tua espada régia e furei o mundo com ela. Arranquei o meu elmo encimado pelo Cavalo Alado do Lado por Trás do Horizonte e fechei os dedos no punho invertido da lâmina. Lágrimas saíram, inventaram destinos venenosos ou vinganças inférteis, não sei. Sei que ali, assim, chorava. Estendeste-te naquela tua posição real à força do golpe e os teus domínios caíram na matéria que te atravessou e que te pertencia agora, para sempre. Ficaste e eu também.
Esperei que o exército dispersasse e, ali, assim, prestei o único tributo digno de ti. Desprendi o meu manto, arranquei a minha armadura do meu corpo e agradeci por te ter abraçado, minha Rainha.



28.09.10