terça-feira, 21 de junho de 2011

última desconjuntada conversa

Faz calor. Esmigalhaste-me o coração que te dei, sem retorno, com a vontade de mil anos de amor. Ao meu redor vemos os taipais de plurais cores, garridos à força do sol do meio-dia. Falo para ti, desta forma, porque sei que me tentas ouvir. E continuo a falar.

Já pensaste naquelas férias que íamos fazer? Tinhas pensado no Havai. O teu sorriso cintilava quando te falava poeticamente do hotel onde poderíamos estar. Um pequeno pedaço de mundo só nosso, banhado pelos oceanos que molharam os corpos de antigas rainhas. O sol douraria sobre a baía numa conversa calma e excitante com as areias do nosso abraço. Juntos, numa espreguiçadeira só, tu e eu, ouvindo o lento marulhar das ondas, as falésias a invejarem o longínquo horizonte, e as nossas roupas – todas elas – a mirrarem o céu acima, desejando o ardor dos nossos corpos. Parece que me lembro dos detalhes todos. Mas acho que não queres ouvir o que já ouviste.

Ontem, perto do talho, um homem perguntou-me por ti. Uma criatura esculpida com as formas com que outras mulheres se excitariam. “Quem é você?”. Josh Phelps, o nome dele. E disse-me que era teu marido. Há doze anos.
…as lágrimas lambem-me a cara agora, fico sem vontade de falar para este pedaço de calhau.
Só te digo que, onde quer que estejas – se é que estás nalgum sítio – esta foi a nossa última conversa. Despedia-me de ti com um beijo mas, agora que vi o teu querido Josh a sair daqui, espero que ardas no mais atrofiante dos infernos. Se achares que te dá proveito deixo aqui a nossa aliança. Vi com ela as nossas bodas de prata. Enfim… Pode ser que nasçam dela os teus filhos Phelpszinhos. Comigo e com o meu futuro não interfirás. Nem tu, nem o oblíquo da tua morte.
Despeço-me deste cemitério taciturno e com ímpia raiva de Phelps. Mas com mais raiva do que li na tua urna, durante meses. “Elysabeth Gray, Casada com Robert Gray.”

Ao sair, fez-se no meu rosto um lúgubre sorriso ao imaginar-te, enclausurada naquele carro, completamente desfeita em sangue, a gritar: “Josh!...Alguém! Josh...! Acudam!”…e ninguém te estender um dedo sequer.





SaintBroken 21.06.11

terça-feira, 14 de junho de 2011

Breve alucinação

Eram as sombras breves que se destacavam, já fracas, no dia que anoitecia lá fora. Ele ali, de frente ao ecrã, envolto no frio que uma ou outra memória iam deixando sentir ficou, simplesmente. Em nada se soltava o pensamento e a cadeira inclinara-se lenta, calma e dura, quase estável até conseguir fechar os olhos. Seria bom pensar, ainda que entorpecido, entardecido talvez pela chuva que se sentia avizinhar. Três da manhã. “Seria bom pensar…” Adormecera.
Uma cavalgante alucinação. Inconsciente do seu rumo a saliva caía, escorrendo de um dos cantos da boca, pesada como ferro. Ele entraria na noite, esgrimindo os sonhos numa devassa luta até aos portões da manhã. A alucinação, por esta altura, respirava mais baixo, num tom suave, sangrando lentamente esta memória que aqui escreverei. Nada de mais extraordinário se passaria ali. O frio apertaria em coro com o tempo e a cadeira, dura, não sofreria movimento. A saliva, a dado ponto, achar-se-ia sem reposição numa boca que ia secando entre os oxigénios trocados nos pulmões. No meio de uma atmosfera quase informe, as palavras formaram-se no núcleo da sua mente e – sem que o soubesse – a alma encheu-se…

. Reparei que estava sentado. Tu, só, à frente dos meus olhos. Depois a conquista, o campo de visão aumentado. Mais pessoas, ainda que desvanecidas. Mas só tu estavas, numa exuberância belamente esculpida, nítida ao que parecia ser o preambulo de uma conversa. Conseguia ver-te, numa divisão qualquer do meu cérebro, tal como és: A tua face escavava um sentido mórbido de violência, fazia-se mostrar no orgulho de uma bênção divina, como se a tua cara, os contornos, os pormenores, as cicatrizes fossem – tal como são – detalhes de uma pintura. Nos teus olhos vinha o brilho que, ao alvorecer, fazias questão de reluzir quando o sol sossegado entrava no nosso quarto, ainda enfraquecido pela noite. Os cabelos deixavam-se cair dos ombros magnificamente, enrolavam-se em pequenos tufos nas pontas que, pela luz que entrava do vidro, floriam a mais justa das purezas. Íamos no metro, sentados frente a frente. Os teus olhos azuis olhavam-me sufocantes. Os teus lábios pequenos enclausuravam-se no teu pequeno silêncio. Estavas fria e dura tal como a cadeira e o ar fora da alma onde a saliva secara. Os meus olhos percorriam o teu rosto, fazia-o num traço pouco conhecido, um trilho por onde povos antigos se perderiam. Foi aqui que, cá fora, balbuciou um nome. Dentro, começaste a falar.
Em nada fazias sentido. Palavras desencontradas, desconexas, um turbilhão de sons que talvez fossem desterrados de um qualquer pedaço do meu cérebro. Nada se alterara por fora. Ele continuava-se e ia-se continuando, perdido no ventre da noite. Então, a importância vital do teu som destruiu-se. Começaste a inclinar-te. A distância ia diminuindo, uma emoção cardíaca fulminante trespassou, fraca, depois mais forte e mais forte. Um comboio de espasmos e convulsões concluíram-se naquela magia, aquela fonte de nutrição. Senti, como se a realidade fosse aquilo e não a cadeira ou o frio, senti tudo. Os lábios, o movimento gracioso do calor e das cores enrubescendo, as línguas a sujarem-se de sabor, as lâminas entroncando a excitação nas coxas. Tudo fazia sentido, tudo estava ali, no alcance que eu sempre quis. Já nada se dava por concreto, por informe, por imoral. Fizemo-lo, ali mesmo, o amor que outrora, nos reinos da glória, um rei poderia desejar. Um reino nosso, os nossos corpos juntos, enlaçados no meio do metro, numa cama que ia aparecendo. Éramos só nós. E chegava. Fora, uma repetição sussurrante de gemidos intensificou-se, e a saliva babava outra vez. Já fazia noite.
O metro desaparecera, era um quarto. Estavas em cima, cavalgando o prazer. Respiravas rápido, de boca entreaberta como que esperando um beijo do anjo que te fez. O teu cabelo selvático, a tua pele suada e os teus olhos serrados fechavam o nosso mundo ali, naquele momento, moldando o fim dos tempos àquilo, ao nosso amor, ao prazer de tantos séculos. Estávamos, obviamente, nus. Pele com pele, alma com alma. Diria que tinha passado dias naquela alucinação. Naquele beijo e naquele sexo. Naquele tudo que começou a desvanecer.
Uma claridade súbita, um branco agressivo a desfocar a realidade. Tu já tinhas ido, não sei para onde, mas foste, tal como vieste ou como te trouxeram – nua.

Acordou ofegante. A camisola encerrava-se no suor da pele, a saliva, essa, molhara já os calções. Foi aqui, tão suave como entardecido, que justificou o sonho na excitação que passara de dentro para fora. Assinou um prazer que, vivido na alma, sangrou na carne. Um prazer tão forte que voou entre dois mundos distintos, falsos entre si: um branco leitoso espalhava-se nos calções. Só isso, e ele sorriu. Os portões da manhã tinham chegado.
…e pensou: “Felizmente chegaram no seu tempo.”

domingo, 5 de junho de 2011

Flor negra

Sente-se as frinchas cortadas quando o cérebro se esvazia.

Sente-se o sangue coagulado debaixo da pele e as explosões fugazes das paixões a desvanecerem, gritos negros de fraco líquido sanguíneo.

Sentem-se as flâmulas da morte insone que me foste dando no meio das palavras, esgotos contaminando as minhas veias como quem acha um decapitado.

Sente-se a tua voz estridente incendiando os luares que deixaram de existir.

Sente-se a frívola dor do pesadelo que enxertaste violentamente em mim, que prometeste não deixar cair em cancros forçados, sentimentos arranhados pela lâmina com que me desfizeste.

Sente-se em todos os lados escuros o teu álcool grosso, os teus ranhos congelantes, as cinzas que tornas os humanos.

Sente-se a morte lenta a afogar os sonhos e os universos falsos entre as tuas coxas e os teus lábios.

Sente-se a tua língua mole, quase morta, a contorcer-se entre os pensamentos frios e duros dos homens.

Sente-se a ti, só isso, a passar no obscuro de cada cérebro inteligente e matá-lo nos sorrisos dos monstros, na brancura dos teus dentes canibais.

Sente-se a tua voz como serras que mutilem ossos e lágrimas.

Sinto-te, tão bem como sinto o meu coração a derreter no sangue coalhado dos loucos.

Sinto-te como quem sente os infernos cervejando a glória dos diabos…

…e, mesmo assim, vou-me lembrando de flores.








Saintbroken 5.6.11