terça-feira, 19 de julho de 2011

sou exangue

Uma memória metralhava
Uma fina saudade só
Entre silêncios cantava
No meu cérebro em pó.

Um clangor suave
Um desvanecido pecado
Calvário bom, grito grave
Como quem gosta de fado.

É isto, escrever sem ler
O que sussurram as memórias
Pedaços de ti, pedaços de ser
Sem que o sejam as histórias.

Falar alto ao mundo
Ou deixar de olhar a lua
Ver-te passar, tocar o fundo
Deixar de existir, pensar-te nua.

Porque me morre o olhar
Onde explodiu o teu vulcão
Saber, sentir, ver-te falhar
E reconhecer-te a perfeição.

Naqueles lados obscuros
Onde se sente até o ar
Falaria entre silêncios duros
Silêncios sós, nosso beijar.

E penso-te toda, assim
Entre peças de um sangue
Sou o que meteste em mim
E que tiraste. Sou exangue.




19.7.11

quinta-feira, 7 de julho de 2011

acabou

Deixei-te um sonho que já não arde. Que já não crepita, já não respira. Abandonei-te sob as margens etéreas do nosso passado, aquelas onde nos costumávamos beijar e abraçar. Em breve, entre lâminas e sagas, escreverei histórias sobre nós e nossa falência quase crónica. Porque nunca nos fomos destinados, nunca escrevemos no mesmo papiro ou no mesmo livro. Fomos, um por si, dois. E por isso te deixei nisso, nessa espécie de alavanca estragada, morta por futuros que nunca existirão. Eis agora que, entalados nestes momentos frios, vejo passarem-me pelos olhos os segundos em que não sosseguei, que não consegui descansar nos teus olhos, que não saboreei os teus lábios. Vejo-te perdida na cordilheira que é a solidão, balançando nas montanhas, segura apenas pela esperança vazia com que tentas manter a nossa relação. A relação que eu matei, asfixiada ao limite…hasteando sobre o seu sangue uma bandeira quase suástica. Larguei a tua mão no meio do deserto, no oculto negro com que se destroem nações inteiras, com aquele único número que desactiva o motor que gira o mundo. …Não percebo até onde vai o meu atrevimento, não prevejo até onde escreverei isto, esta coisa, esta condenação.

Enforquei-te e deixei-te pendurada. Depois, com o cadafalso caído, contorcias-te e eu via, neutro, imóvel. De quando em vez gritavas no sufoco, clamavas pelo meu nome e pelos beijos que, por meses, ansiaste. Morreste em frente a mim e eu observei. Quase que me lembro de tudo. A nossa relação, contigo dentro, a desesperar, a ficar, a engolir-se. O universo - agora o sei - fez em ti o desígnio que eu, ostensivamente, procuro. Tu, na tua beleza óbvia, mostraste-me o poder que existe em cada molécula, em cada pesadelo, em cada toque. E eu percebi que há poderes inexpugnáveis…e outros que não.

Eu olhei-te. Estavas estendida sobre ti no meio da sala. Tinha-te deixado na forca da nossa relação. Foi aí que eu disse: “Acabou.”…tu respondeste: “Eu sei.”

…e só aí….eu chorei.







7.7.11

terça-feira, 5 de julho de 2011

Feira do Livro: Criatura Pedinte

Há - desde há muito tempo - uma criatura que deambula por lá, com um fedor orbital e uma aparência, digamos, inapropriada. Ninguém lhe sabe o nome, a idade ou a justificação de, durante boa parte do dia, estar, efectivamente, ali. Não que esteja simplesmente, não, ela está e faz. Alia quase perfeitamente o espaço e a consequência das coisas para que, a dado momento, o seu objectivo se concretize para a próxima injecção. Nisto (creio) se resume a, digamos, vida desta criatura.

O método é simples: Olha, vê alguém possivelmente abastado (a quem tem a decência de chamar “Doutor”) ou com um excesso, quase numérico, de compaixão e, inevitavelmente, ataca. Fá-lo como um predador, marca e persegue a presa até ao limite. Uma vez a presa extorquida (ou não), avança e repete o processo, com uma pujança invejável, sem qualquer noção escrupulosa, se preciso for, ali mesmo, na pessoa ao lado. A coisa torna-se ridícula quando se reflecte – tal como um predador animal, e portanto irracional – sobre os mecanismos que usa. Como já falamos, o fedor de tal intensidade que, quando cheirado, facilmente se percebe que é, não falta de higiene, mas uma arma concebida e desenhada – e, portanto, pensada - para uma tarefa específica: não se suporta por mais de 12 segundos.
O segundo mecanismo é, veja-se, a voz. Num primeiro estágio, tal como uma estirpe virulenta de uma doença, olha-se e repulsa-se aquela criatura. Uma voz que, mesmo antes de enunciada, anuncia o terror dos próximos momentos: tudo na boca está mal criado, semelhante a um erro divino, impensável e destituído de qualquer misericórdia. Mas ainda assim, e sabendo-o certamente, a criatura prossegue. E vem o som. Coisa penetrante dado o volume com que fala, injectando nele a quantidade de decibéis representativa da vontade ressacada que tem de, literalmente, injectar nas veias a próxima droga. Tudo isto cria, no segundo estágio, embaraço. Uma diminuição significativa do primeiro que não possibilitava qualquer vislumbre de sucesso. O cheiro, esse, aumenta exponencialmente à medida que os segundos ultrapassam o limite imposto, quase por inconsciência, por todos.
Terceiro mecanismo: a frase. “Senhor(a) paga-me uma sopinha que tenho fome/necessidade de comer?”. Tudo, aqui, está certo. A educação que aplica no sujeito, o diminutivo psicológico que emprega e a razão – animal, e por isso, universal – de comer. Até aqui, se a criatura não tivesse metade do cérebro derretido, o sucesso seria alcançado. Na presa, uma vez iludida numa visão horrenda e embebida num cheiro nauseabundo, aquela frase atingiria, passando por sucessivas barreiras monetárias e cerebrais, o movimento tão selvaticamente ansiado: meter a mão ao bolso e tirar uma quantia singela de moedas.
Mas, seguindo o equilíbrio do universo, nada é perfeito e o erro torna-se peso de balanço numa acção que se presumia perfeita. E esta criatura não é excepção. Estando a presa no único momento que tem de consciencializar o que ouve, cheira e vê à sua frente, naquela hesitação que permite a segurança de um humano face aos perigos do mundo, aquele não mais do que um segundo de pensamento, o predador insiste e aplica mais uma série de mecanismos de erro – ou de equilíbrio. Começa pelo toque material. Aplica na presa uma força não civilizada de pressão. Chega, por vezes, mais longe, não tocando mas agarrando, sentindo a densidade e o peso do objecto. Até, em certas pessoas mais relutantes, aplica a força das duas mãos. Nesse momento, aqueles segundos de pensamento tornam-se noutra matéria distinta desprovida de razão: em instintos. Já não se trata de dar dinheiro para manter a existência de alguém ou para suster a sua orgânica. Não se trata de pensar sobre o assunto. Trata-se de recorrer a todos os métodos para acabar com aquela espécie de contaminação, ainda que imaterial, de liberdade sem penas nem consequências. Torna-se então crucial o afastamento – como um medicamento prescrito pela circunstância.
Neste ponto da investida, a fase da “doença” inicia o processo de remissão a um ritmo galopante. Já não basta dizer que não, que não se tem dinheiro, que não se quer ou até, como já ouvi, que se está enjoado. Não. Para sair daquela prisão - construída ainda que sob plurais razões de vício – é necessário suster a respiração (o cheiro tornar-se-á, a certa altura, execrável) e dizer: VÁ SE EMBORA, PORRA! – as variantes menos sociáveis também se ouvem com invulgar repetição.
O predador, recebida a mensagem, declara o seu insucesso num silêncio que por ser neutro provoca na vítima, não apenas o auto-desprezo mas o significado absurdo que aqueles minutos acabaram de ter na existência da criatura. Com uma normalidade incómoda, o predador – agora derrotado – saí, com a triunfante marca da neutralidade, e aproxima-se de outra presa. Este intervalo que vai da derrota à nova eleição completamente aleatória – ainda que sob razões pragmaticamente fundadas – de uma nova vítima dá-se instantaneamente. Vê-se que aquele cérebro não trabalha de forma autónoma, como elemento fulcral na orgânica de um corpo, ou ainda como controlo desse mesmo corpo. Ali está enterrado em metal liquefeito a programação de um acto que dura durante breves minutos, simplesmente com o âmbito, não de comer, não de prazer, nem ainda de viver. Vive-se, naqueles breves minutos – que não são senão a vida da criatura repetida infinitas vezes – para o comprazimento que outros segundos têm naquele cérebro: a seringa rápida no interior do cotovelo e a absorção e prazer instantâneos. E, fazendo de si elemento único da realidade, com um sistema jurídico autónomo, vai julgando quem vê, mancando obsessiva e silenciosamente.

Mas passam as horas e, mesmo elegendo vítimas rua acima, nunca se deixa de ouvir, com maior ou menor atenção, como um zumbido inquietante, a já prodigiosa frase: “Senhora, pague-me uma sopinha!”