terça-feira, 14 de junho de 2011

Breve alucinação

Eram as sombras breves que se destacavam, já fracas, no dia que anoitecia lá fora. Ele ali, de frente ao ecrã, envolto no frio que uma ou outra memória iam deixando sentir ficou, simplesmente. Em nada se soltava o pensamento e a cadeira inclinara-se lenta, calma e dura, quase estável até conseguir fechar os olhos. Seria bom pensar, ainda que entorpecido, entardecido talvez pela chuva que se sentia avizinhar. Três da manhã. “Seria bom pensar…” Adormecera.
Uma cavalgante alucinação. Inconsciente do seu rumo a saliva caía, escorrendo de um dos cantos da boca, pesada como ferro. Ele entraria na noite, esgrimindo os sonhos numa devassa luta até aos portões da manhã. A alucinação, por esta altura, respirava mais baixo, num tom suave, sangrando lentamente esta memória que aqui escreverei. Nada de mais extraordinário se passaria ali. O frio apertaria em coro com o tempo e a cadeira, dura, não sofreria movimento. A saliva, a dado ponto, achar-se-ia sem reposição numa boca que ia secando entre os oxigénios trocados nos pulmões. No meio de uma atmosfera quase informe, as palavras formaram-se no núcleo da sua mente e – sem que o soubesse – a alma encheu-se…

. Reparei que estava sentado. Tu, só, à frente dos meus olhos. Depois a conquista, o campo de visão aumentado. Mais pessoas, ainda que desvanecidas. Mas só tu estavas, numa exuberância belamente esculpida, nítida ao que parecia ser o preambulo de uma conversa. Conseguia ver-te, numa divisão qualquer do meu cérebro, tal como és: A tua face escavava um sentido mórbido de violência, fazia-se mostrar no orgulho de uma bênção divina, como se a tua cara, os contornos, os pormenores, as cicatrizes fossem – tal como são – detalhes de uma pintura. Nos teus olhos vinha o brilho que, ao alvorecer, fazias questão de reluzir quando o sol sossegado entrava no nosso quarto, ainda enfraquecido pela noite. Os cabelos deixavam-se cair dos ombros magnificamente, enrolavam-se em pequenos tufos nas pontas que, pela luz que entrava do vidro, floriam a mais justa das purezas. Íamos no metro, sentados frente a frente. Os teus olhos azuis olhavam-me sufocantes. Os teus lábios pequenos enclausuravam-se no teu pequeno silêncio. Estavas fria e dura tal como a cadeira e o ar fora da alma onde a saliva secara. Os meus olhos percorriam o teu rosto, fazia-o num traço pouco conhecido, um trilho por onde povos antigos se perderiam. Foi aqui que, cá fora, balbuciou um nome. Dentro, começaste a falar.
Em nada fazias sentido. Palavras desencontradas, desconexas, um turbilhão de sons que talvez fossem desterrados de um qualquer pedaço do meu cérebro. Nada se alterara por fora. Ele continuava-se e ia-se continuando, perdido no ventre da noite. Então, a importância vital do teu som destruiu-se. Começaste a inclinar-te. A distância ia diminuindo, uma emoção cardíaca fulminante trespassou, fraca, depois mais forte e mais forte. Um comboio de espasmos e convulsões concluíram-se naquela magia, aquela fonte de nutrição. Senti, como se a realidade fosse aquilo e não a cadeira ou o frio, senti tudo. Os lábios, o movimento gracioso do calor e das cores enrubescendo, as línguas a sujarem-se de sabor, as lâminas entroncando a excitação nas coxas. Tudo fazia sentido, tudo estava ali, no alcance que eu sempre quis. Já nada se dava por concreto, por informe, por imoral. Fizemo-lo, ali mesmo, o amor que outrora, nos reinos da glória, um rei poderia desejar. Um reino nosso, os nossos corpos juntos, enlaçados no meio do metro, numa cama que ia aparecendo. Éramos só nós. E chegava. Fora, uma repetição sussurrante de gemidos intensificou-se, e a saliva babava outra vez. Já fazia noite.
O metro desaparecera, era um quarto. Estavas em cima, cavalgando o prazer. Respiravas rápido, de boca entreaberta como que esperando um beijo do anjo que te fez. O teu cabelo selvático, a tua pele suada e os teus olhos serrados fechavam o nosso mundo ali, naquele momento, moldando o fim dos tempos àquilo, ao nosso amor, ao prazer de tantos séculos. Estávamos, obviamente, nus. Pele com pele, alma com alma. Diria que tinha passado dias naquela alucinação. Naquele beijo e naquele sexo. Naquele tudo que começou a desvanecer.
Uma claridade súbita, um branco agressivo a desfocar a realidade. Tu já tinhas ido, não sei para onde, mas foste, tal como vieste ou como te trouxeram – nua.

Acordou ofegante. A camisola encerrava-se no suor da pele, a saliva, essa, molhara já os calções. Foi aqui, tão suave como entardecido, que justificou o sonho na excitação que passara de dentro para fora. Assinou um prazer que, vivido na alma, sangrou na carne. Um prazer tão forte que voou entre dois mundos distintos, falsos entre si: um branco leitoso espalhava-se nos calções. Só isso, e ele sorriu. Os portões da manhã tinham chegado.
…e pensou: “Felizmente chegaram no seu tempo.”

2 comentários:

  1. http://www.youtube.com/watch?v=PgNHy7z9zjg

    "Felizmente chegaram no seu tempo" Tudo tem o seu tempo, certo ou incerto, de ser ou não ser, ele existe.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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