terça-feira, 5 de julho de 2011

Feira do Livro: Criatura Pedinte

Há - desde há muito tempo - uma criatura que deambula por lá, com um fedor orbital e uma aparência, digamos, inapropriada. Ninguém lhe sabe o nome, a idade ou a justificação de, durante boa parte do dia, estar, efectivamente, ali. Não que esteja simplesmente, não, ela está e faz. Alia quase perfeitamente o espaço e a consequência das coisas para que, a dado momento, o seu objectivo se concretize para a próxima injecção. Nisto (creio) se resume a, digamos, vida desta criatura.

O método é simples: Olha, vê alguém possivelmente abastado (a quem tem a decência de chamar “Doutor”) ou com um excesso, quase numérico, de compaixão e, inevitavelmente, ataca. Fá-lo como um predador, marca e persegue a presa até ao limite. Uma vez a presa extorquida (ou não), avança e repete o processo, com uma pujança invejável, sem qualquer noção escrupulosa, se preciso for, ali mesmo, na pessoa ao lado. A coisa torna-se ridícula quando se reflecte – tal como um predador animal, e portanto irracional – sobre os mecanismos que usa. Como já falamos, o fedor de tal intensidade que, quando cheirado, facilmente se percebe que é, não falta de higiene, mas uma arma concebida e desenhada – e, portanto, pensada - para uma tarefa específica: não se suporta por mais de 12 segundos.
O segundo mecanismo é, veja-se, a voz. Num primeiro estágio, tal como uma estirpe virulenta de uma doença, olha-se e repulsa-se aquela criatura. Uma voz que, mesmo antes de enunciada, anuncia o terror dos próximos momentos: tudo na boca está mal criado, semelhante a um erro divino, impensável e destituído de qualquer misericórdia. Mas ainda assim, e sabendo-o certamente, a criatura prossegue. E vem o som. Coisa penetrante dado o volume com que fala, injectando nele a quantidade de decibéis representativa da vontade ressacada que tem de, literalmente, injectar nas veias a próxima droga. Tudo isto cria, no segundo estágio, embaraço. Uma diminuição significativa do primeiro que não possibilitava qualquer vislumbre de sucesso. O cheiro, esse, aumenta exponencialmente à medida que os segundos ultrapassam o limite imposto, quase por inconsciência, por todos.
Terceiro mecanismo: a frase. “Senhor(a) paga-me uma sopinha que tenho fome/necessidade de comer?”. Tudo, aqui, está certo. A educação que aplica no sujeito, o diminutivo psicológico que emprega e a razão – animal, e por isso, universal – de comer. Até aqui, se a criatura não tivesse metade do cérebro derretido, o sucesso seria alcançado. Na presa, uma vez iludida numa visão horrenda e embebida num cheiro nauseabundo, aquela frase atingiria, passando por sucessivas barreiras monetárias e cerebrais, o movimento tão selvaticamente ansiado: meter a mão ao bolso e tirar uma quantia singela de moedas.
Mas, seguindo o equilíbrio do universo, nada é perfeito e o erro torna-se peso de balanço numa acção que se presumia perfeita. E esta criatura não é excepção. Estando a presa no único momento que tem de consciencializar o que ouve, cheira e vê à sua frente, naquela hesitação que permite a segurança de um humano face aos perigos do mundo, aquele não mais do que um segundo de pensamento, o predador insiste e aplica mais uma série de mecanismos de erro – ou de equilíbrio. Começa pelo toque material. Aplica na presa uma força não civilizada de pressão. Chega, por vezes, mais longe, não tocando mas agarrando, sentindo a densidade e o peso do objecto. Até, em certas pessoas mais relutantes, aplica a força das duas mãos. Nesse momento, aqueles segundos de pensamento tornam-se noutra matéria distinta desprovida de razão: em instintos. Já não se trata de dar dinheiro para manter a existência de alguém ou para suster a sua orgânica. Não se trata de pensar sobre o assunto. Trata-se de recorrer a todos os métodos para acabar com aquela espécie de contaminação, ainda que imaterial, de liberdade sem penas nem consequências. Torna-se então crucial o afastamento – como um medicamento prescrito pela circunstância.
Neste ponto da investida, a fase da “doença” inicia o processo de remissão a um ritmo galopante. Já não basta dizer que não, que não se tem dinheiro, que não se quer ou até, como já ouvi, que se está enjoado. Não. Para sair daquela prisão - construída ainda que sob plurais razões de vício – é necessário suster a respiração (o cheiro tornar-se-á, a certa altura, execrável) e dizer: VÁ SE EMBORA, PORRA! – as variantes menos sociáveis também se ouvem com invulgar repetição.
O predador, recebida a mensagem, declara o seu insucesso num silêncio que por ser neutro provoca na vítima, não apenas o auto-desprezo mas o significado absurdo que aqueles minutos acabaram de ter na existência da criatura. Com uma normalidade incómoda, o predador – agora derrotado – saí, com a triunfante marca da neutralidade, e aproxima-se de outra presa. Este intervalo que vai da derrota à nova eleição completamente aleatória – ainda que sob razões pragmaticamente fundadas – de uma nova vítima dá-se instantaneamente. Vê-se que aquele cérebro não trabalha de forma autónoma, como elemento fulcral na orgânica de um corpo, ou ainda como controlo desse mesmo corpo. Ali está enterrado em metal liquefeito a programação de um acto que dura durante breves minutos, simplesmente com o âmbito, não de comer, não de prazer, nem ainda de viver. Vive-se, naqueles breves minutos – que não são senão a vida da criatura repetida infinitas vezes – para o comprazimento que outros segundos têm naquele cérebro: a seringa rápida no interior do cotovelo e a absorção e prazer instantâneos. E, fazendo de si elemento único da realidade, com um sistema jurídico autónomo, vai julgando quem vê, mancando obsessiva e silenciosamente.

Mas passam as horas e, mesmo elegendo vítimas rua acima, nunca se deixa de ouvir, com maior ou menor atenção, como um zumbido inquietante, a já prodigiosa frase: “Senhora, pague-me uma sopinha!”

Um comentário:

  1. Também me cruzei com esta "criatura pedinte", e concordo plenamente com a descrição que dela foi feita. :)

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